segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A grande viagem


Minha amiga Maria Luiza de Carvalho, escritora (veja seus textos em http://www.oficinadaescritablog.blogspot.com/), conta que começou a dar sossego à mãe só quando ganhou do pai a coleção do Monteiro Lobato. Daí em diante, tornou-se uma leitora voraz.

Lembrei da Isa ao concluir esse quadro, que eu chamo de "A Grande Viagem". Na verdade, são três telas, separadas, mas que devem ficar juntas - um tríptico.

Nessa estante certamente está a coleção do Monteiro Lobato - tão importante para Isa, para mim e para tantos de nós. E mais: os 18 volumes do Tesouro da Juventude, Érico Veríssimo, Connan Doyle, Maurice Leblanc (aventuras de Arsènne Lupin), as Seleções do Readers Digest, o Almanaque Eu Sei Tudo, alguns exemplares do Tico-Tico (com Bolão, Reco-Reco e Azeitona), os clássicos franceses (Os Miseráveis, é claro, lido e relido), Jose Mauro de Vasconcelos (desculpe, ninguém é perfeito), Jorge Amado, Morris West, Sommerset Maughan (é assim que se escreve?), Agatha Christie, a senhora Leandro Dupré (que, depois do desquite, assinava "Fulana de Tal, ex-senhora Leandro Dupré") etc. etc. etc.

E mais: todo o imaginário dos quadrinhos: a família Marvel (com Billy
Batson, o locutor da rádio; Fred, o jornaleiro, e Mary – o que fazia ela quando não era Mary Marvel?), Superhomem, Fantasma (o sr. Walker, o espírito que anda, comandante da Patrulha da Selva, ajudado por Duran e eterno noivo de Diana Palmer, funcionária da ONU), Mandrake (seu amigo Lotar e sua noiva, a princesa Narda), o Cavaleiro Negro (na vida real (?) o doutor Robledo), os dois Zorros (o da espada, com seu mordomo Bernardo, e o Cavaleiro Solitário, que não era tão solitário assim pois estava sempre acompanhado do índio Tonto), Batman (Bruce Wayne) e Robin (Dick Grayson), Arqueiro Verde e tanta gente mais...

Tudo isso dos 7 aos 14, 15 anos. Depois veio coisa de gente grande – aí nem é bom começar a lista. Três estantes, confesso, é muito pouco. Ou, como disse Fernando Pessoa: "...e tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero".

sábado, 30 de maio de 2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Caminho do Sol

Sou daqueles que caminham por prazer. O prazer de enfrentar – e vencer – um triplo desafio: físico, mental e psicológico. O prazer de se surpreender com a bela paisagem depois de uma curva. O prazer de ficar a sós. O prazer de descobrir como lidar com seus medos e incertezas. O prazer do silêncio. O prazer de aprender a conviver com a solidão.
Para isso, é preciso estar sozinho. A presença permanente do outro anula os desafios mental e emocional. Tudo se limita, então, a uma questão de esforço físico.
Isso é ainda pior quando o grupo não se forma espontaneamente, por afinidade ou amizade, mas é imposto – como no Caminho do Sol. O caminho corre o risco de se tornar medíocre, pouco enriquecedor, vulgar. Apenas uma maratona. Felizmente comigo não foi assim. Alberto e Izabel foram bons companheiros e respeitaram meus momentos de isolamento.
Tomara que um dia seja possível fazer o Caminho do Sol com liberdade. Com a mesma liberdade que se tem no Caminho de Santiago. Começar onde quiser, no dia que escolher. Dormir e comer onde achar melhor. Andar quanto quiser ou puder. Levar o tempo que for necessário para chegar ao destino. E chegar feliz, completo, tendo vivido uma experiência pessoal, única, incomparável e intransferível.

sábado, 28 de março de 2009

A Via Sacra de Lígia Vellasco

Minha amiga Lígia Vellasco, pintora há mais de 50 anos, está expondo uma Via Sacra no Memorial D. Lucas M. Neves, em São João del-Rei.
A Via Sacra de Lígia Vellasco é forte, dramática, ousada, quase atrevida. A começar pelo tratamento cromático. Lígia resumiu sua paleta a apenas três cores e suas variações. Vermelho, amarelo e marrom – sangue, luz e sombra. Verdes e azuis estão deliberadamente ausentes. Com isso, as telas ganham força e dramaticidade. Os momentos decisivos do cristianismo são representados sem cores frias, sem meios tons, sem artifícios visuais que amenizem a tragédia.
A abordagem de Lígia também é criativa. Seu Cristo é um homem forte, másculo, vigoroso. Os coadjuvantes – soldados, mulheres, pessoas em geral – são figuras quase patéticas, perplexas, teatrais, arlequinescas. Como se não percebessem totalmente o que estava acontecendo. Como se não soubessem a importância dos eventos a que presenciavam.
As telas, é claro, contam uma história. Por elas se acompanha, passo a passo, o enredo tão conhecido. Ainda assim, em cada tela Lígia Vellasco surpreende o observador. O fundo escuro e diagonais fortes e inesperadas – a trave da cruz, as lanças, um feixe de luz, a posição de um corpo – conduzem o olhar para uma ação que ocorre em lugar e época indefinidos.

terça-feira, 24 de março de 2009

A bagagem de Júnia

Júnia Lobo, amiga de Belo Horizonte, paisagista, escreveu:
“O quadro já está na parede do meu quarto, ficou lindo. Posso admirá-lo sempre, pela proximidade e pelo que ele me evoca: minha bagagem de vida, bem distribuída e armazenada em volumes diferentes, podendo ser revisada a qualquer momento.”

Eu respondi:
“Fico feliz em saber que o quadro encontrou novo lar e que está sendo fonte de prazer, alegria, lembranças, coisas boas. Afinal, é para isso que a gente faz as coisas – um texto, um quadro, um jardim.”

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Uma viagem particular

Para as tribos nômades, o deslocamento era uma mudança, não uma viagem. Tudo e todos – gentes, bichos e coisas – iam juntos de um lugar para outro. Tudo mudava, e tudo continuava igual.
Apenas quando as tribos se estabeleceram a viagem passou a existir. Porque a viagem é individual e particular. A viagem tem ida e volta. A viagem diferencia os que foram dos que ficaram. A viagem fascina. Desde o longo regresso de Ulisses até a chegada do homem na lua. A viagem enriquece. A viagem é transformadora. Por isso Kaváfis aconselha:
“Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.”
Há quase um ano me dedico ao tema viagem/viajante. Acho que tudo começou com minha admiração por Hopper. Fiz uma série do viajante solitário, sempre com uma mala ou valise ao lado. Fiz alguns quartos (de hotel?) com ou sem o viajante, mas com a indispensável mala num canto. Eliminei o cenário e foquei apenas nas malas, pilhas delas, detalhes. Malas sólidas e fechadas contrastavam com roupas esvoaçantes, etéreas. Malas à beira de terraços com a cidade imaginária ao fundo. O viajante apenas esboçado, fragmento de imagem, de costas, indo em frente, indo embora. Indo.
Meu guru Fernando Pessoa disse: “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir”. E a melhor maneira de pintar é sentir. Viajar-pintar-sentir. Coloque os termos em qualquer ordem – o produto é o mesmo.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Arte e narrativa

Célia Cymbalista foi minha primeira mestra no fazer artístico, embora na época eu não ousasse mais do que uns toscos potes em cerâmica. Da cerâmica fui para a xilogravura (com Liria Palombini) e daí para a pintura (com João Quaglia).
Ou seja, passei do tridimensional para o bidimensional. Do abstrato (xilo) para o figurativo. Uma trajetória bastante peculiar, na contracorrente do que se faz hoje em arte. Mas é o que faço e gosto. Não saberia fazer instalações só para ser moderno.
Célia viu este blog e fez um comentário precioso: ”Embora sua pintura, de fato, não seja mesmo adjetivada, ela tem um aspecto narrativo - conta uma historinha. Livrando-se dos adjetivos e da narrativa, você pode ampliar as possibilidades do encantamento e da descoberta para quem entra em contato com seu trabalho.E é isso arte: abertura para o encanto.”
Penso que a decodificação da obra de arte é feita pelo observador. Cada um vê, ali, o que diz respeito a sua cultura, sua história de vida, sua formação, suas neuras, sei lá o que mais.
Não faço ilustração, pois não tenho o talento de um Gustave Doré. Evito particularizar, não conto uma história específica. Mas não há como impedir que o observador crie uma história a partir do que vê. É a história dele, a decodificação que ele faz, com seus elementos pessoais.
Quando pinto uma pilha de malas, eu apenas coloco tinta sobre uma tela branca Alguém verá apenas uma sucessão de planos e cores, superfícies cromáticas. Outro poderá ficar feliz, lembrando viagens de infância. Um terceiro poderá sofrer, frustrado com as viagens que não realizou. Esse o papel da arte: despertar o encanto a partir da visão de cada um.
Evitar isso quer dizer evitar qualquer identificação ou transferência. Qualquer interação do observador com a obra observada. É a chatice da arte abstrata. Linhas, manchas, borrões, superfícies. Pode até ser agradável. Mas em mim não desperta emoção alguma.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O que eu trouxe à Arte

(Konstantinos Kaváfis, tradução de José Paulo Paes)

Eu me ponho a cismar. Sensações e desejos
foi o que eu trouxe à Arte; apenas entrevistos,
alguns rostos e linhas; de amores incompletos,
só a incerta lembrança. A ela entrego-me,
que sabe afeiçoar a Forma da Beleza,
e quase imperceptivelmente, completar a vida
unindo as impressões, unindo os dias.

O fim da viagem: três visões










domingo, 18 de janeiro de 2009

O sol da tarde

(Konstantinos Kaváfis, tradução de José Paulo Paes)

Este quarto, este quarto eu o conheço bem.
Agora está alugado, assim como o vizinho,
para fins comerciais: a casa toda ocupam
escritórios de câmbio e vendas, companhias.

Ah este quarto, como me é familiar.

Ali, ao lado da porta, ficava o divã
com um tapete turco à sua frente;
na estante perto, dois vasos amarelos.
À direita, não, defronte, um armário de espelho.
Bem no centro, a mesa onde escrevia
e as três grandes cadeiras de palha.
Debaixo da janela estava o leito
onde tantas vezes nos amamos.

Pobres móveis, hão de ainda existir nalgum lugar.

Debaixo da janela estava o leito;
o sol da tarde lhe chegava até a metade.
Foi de tarde, às quatro horas, que nós dois nos despedimos
por uma semana só... uma semana,
ai de mim, que se fez eternidade.

Qualquer caminho leva a toda parte,
Qualquer caminho
Em qualquer ponto seu em dois se parte
E um leva aonde indica a estrada
Outro é sozinho.
(Fernando Pessoa)




sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Uma arte sem adjetivos, uma pintura sem ornamentos


O poeta grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933) disse, certa vez, que arte é dizer tudo apenas com substantivos, pois o uso de adjetivos enfraquece a linguagem. Por isso sua poesia - com a qual me identifico profundamente - é seca, isenta de adjetivos, sem ornamentos.
Assim procuro fazer a minha pintura: direta, simples, essencial, substantiva.
A mostra Viagem, exibida na Galeria de Arte da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, e no Centro Cultural Yves Alves, em Tiradentes (MG), encontra algumas referências na poesia existencial e niilista de Fernando Pessoa:
“Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas”.

O mesmo Pessoa foi taxativo, em outro poema:

“Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo no novo, a náusea –
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem alma,
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem –
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.”

Eu poderia dizer que a inquietação sempre se infiltra no fundo do meu coração. E é essa inquietação que procuro transmitir nas minhas telas.

Airton Ribeiro