domingo, 15 de fevereiro de 2009

Uma viagem particular

Para as tribos nômades, o deslocamento era uma mudança, não uma viagem. Tudo e todos – gentes, bichos e coisas – iam juntos de um lugar para outro. Tudo mudava, e tudo continuava igual.
Apenas quando as tribos se estabeleceram a viagem passou a existir. Porque a viagem é individual e particular. A viagem tem ida e volta. A viagem diferencia os que foram dos que ficaram. A viagem fascina. Desde o longo regresso de Ulisses até a chegada do homem na lua. A viagem enriquece. A viagem é transformadora. Por isso Kaváfis aconselha:
“Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.”
Há quase um ano me dedico ao tema viagem/viajante. Acho que tudo começou com minha admiração por Hopper. Fiz uma série do viajante solitário, sempre com uma mala ou valise ao lado. Fiz alguns quartos (de hotel?) com ou sem o viajante, mas com a indispensável mala num canto. Eliminei o cenário e foquei apenas nas malas, pilhas delas, detalhes. Malas sólidas e fechadas contrastavam com roupas esvoaçantes, etéreas. Malas à beira de terraços com a cidade imaginária ao fundo. O viajante apenas esboçado, fragmento de imagem, de costas, indo em frente, indo embora. Indo.
Meu guru Fernando Pessoa disse: “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir”. E a melhor maneira de pintar é sentir. Viajar-pintar-sentir. Coloque os termos em qualquer ordem – o produto é o mesmo.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Arte e narrativa

Célia Cymbalista foi minha primeira mestra no fazer artístico, embora na época eu não ousasse mais do que uns toscos potes em cerâmica. Da cerâmica fui para a xilogravura (com Liria Palombini) e daí para a pintura (com João Quaglia).
Ou seja, passei do tridimensional para o bidimensional. Do abstrato (xilo) para o figurativo. Uma trajetória bastante peculiar, na contracorrente do que se faz hoje em arte. Mas é o que faço e gosto. Não saberia fazer instalações só para ser moderno.
Célia viu este blog e fez um comentário precioso: ”Embora sua pintura, de fato, não seja mesmo adjetivada, ela tem um aspecto narrativo - conta uma historinha. Livrando-se dos adjetivos e da narrativa, você pode ampliar as possibilidades do encantamento e da descoberta para quem entra em contato com seu trabalho.E é isso arte: abertura para o encanto.”
Penso que a decodificação da obra de arte é feita pelo observador. Cada um vê, ali, o que diz respeito a sua cultura, sua história de vida, sua formação, suas neuras, sei lá o que mais.
Não faço ilustração, pois não tenho o talento de um Gustave Doré. Evito particularizar, não conto uma história específica. Mas não há como impedir que o observador crie uma história a partir do que vê. É a história dele, a decodificação que ele faz, com seus elementos pessoais.
Quando pinto uma pilha de malas, eu apenas coloco tinta sobre uma tela branca Alguém verá apenas uma sucessão de planos e cores, superfícies cromáticas. Outro poderá ficar feliz, lembrando viagens de infância. Um terceiro poderá sofrer, frustrado com as viagens que não realizou. Esse o papel da arte: despertar o encanto a partir da visão de cada um.
Evitar isso quer dizer evitar qualquer identificação ou transferência. Qualquer interação do observador com a obra observada. É a chatice da arte abstrata. Linhas, manchas, borrões, superfícies. Pode até ser agradável. Mas em mim não desperta emoção alguma.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O que eu trouxe à Arte

(Konstantinos Kaváfis, tradução de José Paulo Paes)

Eu me ponho a cismar. Sensações e desejos
foi o que eu trouxe à Arte; apenas entrevistos,
alguns rostos e linhas; de amores incompletos,
só a incerta lembrança. A ela entrego-me,
que sabe afeiçoar a Forma da Beleza,
e quase imperceptivelmente, completar a vida
unindo as impressões, unindo os dias.

O fim da viagem: três visões